Vender o carro

Tudo com aquele cheirinho leve de lavanda. Absolutamente nada fora do lugar. A mesa posta e além da iluminação fraca e avermelhada de um abajur distante com um lenço por cima, existem dois focos mais intensos vindos de duas velas longas e também vermelhas postas entre os pratos.

Enquanto você ainda se integra ao ambiente e as sensações, velhas conhecidas individualmente, mas nunca tantas ao mesmo tempo, você percebe o jantar que também está servido.

Não faz ideia do que seja. Servido em uma extravagante tigela de louça com tampa que você nunca tinha visto antes, tampouco fazia ideia de onde eu tinha arrumado.

Mas ainda assim, ela parecia fazer parte do conjunto como se sempre tivesse estado lá.

Você sente o aroma de noz-moscada. Picante, você pensa. Como tudo até o momento.

Depois do jantar você está extasiada e satisfeita. As ostras gratinadas surpresa estavam tão boas que você nem ficou chateada por eu contratar um conjunto de Mariachis para tocar Cielito Lindo na nossa varanda durante o jantar.

Você sabe bem que eu tenho uma certa dificuldade em separar amor de humor. Talvez por serem parônimos. Talvez por me faltar noção mesmo, mas mesmo completamente satisfeita, você não conseguia tirar uma coisa da cabeça: de onde diabos veio essa tigela?

Você fez um esforço mental e não conseguiu encontrar nenhuma pista na cabeça. Nenhuma lembrança daqueles arabescos estranhos. E o formato? Quem usa tigela oval hoje em dia? Isso já era brega em 1950.

Mas você ficou com medo de perguntar. Vai que era um presente da minha avó e eu poderia ficar magoado. Ela tinha mania de fazer umas doações, digamos, incomuns. Você lembrou quando ela lhe deu em um embrulho muito chique e bem feito, a coleção completa de revistas Nova de 1987. Saudades da Manchete. Que Deus a tenha.

Após retirar cuidadosamente a louça da mesa e colocar na pia. Você sabia que só iríamos lavar no dia seguinte mesmo. Ninguém merece se preocupar com essas coisas mundanas quando se está no auge tanto da paixão quanto do jantar, né? A polícia da louça não vai nos fazer uma visita e multar por excesso de porquidade. Ok, cara lavada, dentes escovados e antes de ir para o quarto onde eu estou esperando, você volta para cozinha e liga a luz para dar aquela checada se não tem nada estranho. E olha de novo a tigela. Sob a luz ela é ainda mais horrível. Os trabalhados do lado parecem ter sido feitos por neandertais. Ou melhor, neandertais crianças com dificuldades de coordenação. Era difícil acreditar que aquela peça tenha sido fabricada por mãos humanas. E comercializada. Parecia mais uma maldição que um presente.

De volta ao quarto, que estava na mesma vibe de "Media Luz", embora não estivesse tocando Gardel de fundo, você agradece a Afrodite que eu não misture humor com tesão. Estávamos nos encarando ao som do Brazil Lofi Hits e a menina que nunca para de estudar.

Você está se preparando para perguntar da tigela e então você me olha com aquele olhar que mistura o Gato de Botas e um cachorro sem dono que eu não consigo resistir porque eu amo gatos, principalmente os de botas e tenho uma certa simpatia por cachorros, mesmo os sem dono. Ficamos nessa troca de olhares que não dizem nada mas dizem tudo por alguns segundos ou séculos até que eu, sempre afobado e ansioso digo:

— Amoreco, sabe que estamos comemorando hoje, né?

— Mas... eu cogitei essa possibilidade, mas você não falou nada, então achei que era só um agrado.

— Sim, lembra todas as tardes que eu estava fazendo um curso. Então, hoje foi a conclusão. O último dia.

— Óbvio que eu lembro. Você quis guardar surpresa do que era o curso. Era um curso de investimento em Bitcoin, né? Já falei que isso é tudo pirâmide. Não vai inventar de vender o carro de novo para investir nisso!

— Não amor, claro que não. Você nunca adivinharia. Era um curso de cerâmica. Eu fui o melhor aluno da classe. A tigela do nosso jantar foi o meu trabalho de conclusão. Ficou perfeita, não? Estou até pensando em montar uma oficina de cerâmica aqui em casa. O que acha?

— Acho que a gente deveria vender o carro. Vai que algum desses investimentos são reais, né? Nunca se sabe.