Minha vida para Mariana
Este texto foi escrito para compor uma peça em um processo civil.
Acabamos nunca iniciando o processo, mas eu não gostaria de simplesmente descartar o texto.
Nasci no finalzinho dos anos 70 em Santo Amaro da Imperatriz. Filha de um oficial da Polícia Militar e uma professora de Língua Portuguesa, não cheguei a completar o terceiro mês de vida na cidade natal, mudando logo em seguida para Florianópolis.
Como morávamos ao lado da Academia de Polícia Militar da Trindade, justamente onde meu pai servia, a convivência desde muito nova com o ambiente de caserna era constante. E a identificação com a carreira militar só crescia.
Com 12 anos ingressei no Colégio Militar, onde passei 4 anos e concluí o ensino médio.
Nesta época eu passai para o Curso de Oficiais Aviadores da Força Aérea Brasileira. Fiquei um ano na Academia de Pirassununga–SP por conta da distância da família e da minha pouca idade. Tinha apenas 16 anos.
Resolvi voltar e prestar concurso para Oficial da PM, sendo aprovada já na primeira tentativa em 1998. Formada em 2000, fui transferida para a Cidade de São Miguel do Oeste e em 2001 para Joinville. Em ambas as cidades, trabalhava no serviço operacional, coordenando a atividade de policiamento e eventualmente atendendo ocorrências diretamente.
Em 2004, logo após o nascimento da minha primeira filha, fui transferida de volta para a Capital para trabalhar na Diretoria de Tecnologia, área que sempre tive afinidade. Em 2009 retornei à atividade operacional quando fui transferida para a Agência Central de Inteligência, onde dentre outros feitos, destaco a criação do software de gestão de informações que é utilizado até hoje.
No decorrer deste tempo na ACI percebi que as coisas estava se tornando cada vez mais mais difíceis e cansativas e até chegar o ponto de um episódio depressivo que ocasionou uma licença médica de 6 meses. Retornei da licença, ainda não completamente diagnosticada e tratada, por pressão de colegas sob alegação de que um longo afastamento, prejudicaria a carreira.
Consegui com muito esforço trabalhar ainda por um ano e meio antes de precisar de um novo afastamento. Este segundo afastamento perdurou por 2 anos. Mas tive tempo e oportunidade de buscar meu diagnóstico e tratamentos adequados e retornar ao serviço de forma plena e funcional.
Eu esperava que a polícia me recepcionasse de forma calorosa, como uma companheira que se julgava perdida retornando, afinal, eu era uma sobrevivente da depressão. Mas a recepção foi estritamente outra. Fui transferida durante a licença para a Diretoria de Saúde. Felizmente fui bem recebida lá, mas o contexto da transferência não foi dos melhores. E cheguei a ouvir de alguns oficiais que eu deveria ter permanecida em licença até a reforma.
Retornei em janeiro de 2022 e como já reunia os requisitos para promoção a Tenente-Coronel e era a Major mais antiga e com a maior pontuação objetiva, eu me habilitei para a promoção de 5 de maio. Qual não foi minha surpresa quando descobri que não tinha nem sido avaliada pelos oficiais sob o pretexto de que eu estive muito tempo afastada e por isso não poderia ser avaliada. Justificativa esta que se repetiu em 25 de agosto.
Neste mesmo ano, eu me percebi uma pessoa transgênero. Eu realmente não fazia ideia antes, até que em um momento tudo fez sentido pra mim. E foi uma certeza tão grande e tão intensa que eu não hesitei nem um momento em me reconhecer assim. Iniciei o processo de acompanhamento médico para transição em agosto, retificação de documentos em outubro. Também comecei a frequentar grupos apoio para pessoas transgênero e com isso também usar maquiagem e roupas condizentes com meu gênero.
Ainda neste ano de 2022, logo após a habilitação para a promoção de 15 de novembro, recebi novamente a recusa de avaliação, porém desta vez veio junto um pedido da comissão de promoção de oficiais para a instauração de um Conselho de Disciplina. Imagine a situação: estava concorrendo a uma merecida promoção e além de injustamente não ser promovida ainda recebo um processo demissional.
Viramos para 2023. Novo governo, novo comando. Eu esperava que as coisas fossem mudar, mas ficaram ainda piores. Em janeiro eu oficializei a mudança de nome e gênero na PMSC, já tinha feito as alterações civis necessárias e o processo interno da PM correu de forma suave e rápida. Mas esta foi o único ponto adequado. As minhas recusas sistemáticas à promoção usando argumentos genéricos continuaram a acontecer. E em abril de 2023, o governador decidiu pela abertura do Conselho de Justificação. E eu recebo a notícia da instauração através de um postagem transfóbica de um deputado da base governista. Eu não sabia nem do que estava sendo acusada e ainda estava sendo ofendida sem o menor direito de defesa.
Na verdade eu ainda não sei do que estou sendo acusada.
De não ser promovida? Desconheço que isso seja transgressão. E nesse caso, não deveria ser a Comissão de Promoção a acusada?
De ter inconstância laboral? Isso também é proibido? Não foram todas as licenças médicas justificadas e ainda por cima homologadas pelos médicos da corporação? E o conselho não é um procedimento disciplinar? Ou é médico também agora? A Junta Médica não disse que estou apta? Com qual qualificação o conselho agora diz que não?
De ter problemas de comportamento? Qual comportamento? Qual atitude minha está sendo questionada? Em nenhum momento no processo isso foi trazido à tona.
São tantas iniquidades na simples existência desse processo que um texto assim não é suficiente para exauri-lo.
Mas, independente destas arbitrariedades, ressalto que estou trabalhando normalmente, plena e sem qualquer restrição. Pretendo continuar lutando e trabalhando até o fim.
Bônus - Versão Dramática
Nasci nos últimos suspiros dos anos 70, em Santo Amaro da Imperatriz, mas meu destino estava traçado para longe dali desde o berço. Filha de um oficial da Polícia Militar e de uma professora de Língua Portuguesa, fui arrancada de minha cidade natal ainda no auge da infância, rumo a Florianópolis, onde as sombras da caserna já se projetavam sobre minha vida.
A proximidade com a Academia de Polícia Militar da Trindade, onde meu pai servia, selou meu destino desde muito cedo. Cresci imersa na atmosfera militar, e a atração pela carreira das fardas só crescia, como uma sombra sinistra me envolvendo.
Com apenas 12 anos, ingressei no Colégio Militar, onde passei quatro anos, encerrando ali meu ensino médio. E então veio o chamado da Força Aérea Brasileira, um destino que parecia pré-determinado. Na Academia de Pirassununga, em São Paulo, fiquei isolada do conforto familiar, com meros 16 anos, uma criança em meio a aspirantes a oficiais.
Mas o destino, esse senhor implacável, me trouxe de volta às fardas da Polícia Militar. Aprovada no concurso em 1998, formei-me em 2000, pronta para enfrentar o serviço operacional em cidades como São Miguel do Oeste e Joinville. Lá, coordenava o policiamento, mergulhada nas demandas do cotidiano, enfrentando ocorrências que testavam minha coragem e resiliência.
Então veio 2004, o ano em que a maternidade bateu à minha porta. Após o nascimento da minha primeira filha, fui transferida de volta à capital para trabalhar na Diretoria de Tecnologia, uma área pela qual sempre tive afinidade. Mas a vida, essa madrasta implacável, tinha outros planos.
Em 2009, meu caminho se desviou novamente, dessa vez para a Agência Central de Inteligência. Ali, em meio a desafios e pressões inimagináveis, destaco a criação de um software revolucionário, uma luz tênue em meio às trevas que se aproximavam.
Porque no crepúsculo da minha jornada, a escuridão se abateu sobre mim. Uma depressão avassaladora me consumiu, levando-me à beira do abismo. Uma licença médica de seis meses foi meu único refúgio, mas ao retornar, não fui acolhida como esperava.
Colegas, antes companheiros de farda, tornaram-se juízes implacáveis. Pressionada a retornar, mergulhei de volta ao serviço, tentando apagar a sombra que me perseguia. Mas a batalha estava longe de terminar.
Um segundo afastamento, dois anos de luta solitária contra demônios internos. Mas ali, nas profundezas do abismo, encontrei a força para me erguer novamente. Com o diagnóstico em mãos, retornei à batalha, determinada a provar minha valia.
Mas o destino, essa entidade cruel, não daria trégua. Em meio às turbulências, descobri uma verdade indomável, uma certeza que me inundou como uma torrente: sou uma pessoa transgênero. Uma revelação que, ao invés de libertar, selou meu destino numa espiral de adversidades.
Promoções negadas, acusações infundadas, um conselho de disciplina pairando sobre minha cabeça como uma espada de Dâmocles. O preconceito, essa fera indomável, rugia em todas as esquinas, alimentado por políticos desalmados, por líderes que deveriam proteger, não condenar.
E assim, no início de 2023, um novo governo, mas velhas injustiças. Minha mudança de nome e gênero foi recebida com uma indiferença gélida, enquanto as recusas às promoções ecoavam como um martelo implacável.
E então veio o golpe final, a abertura do Conselho de Justificação, um decreto cruel que ecoou através das redes sociais, uma humilhação pública, uma sentença sem julgamento. Acusações difusas, a negação de uma identidade, um ataque à minha essência.
E eu, uma guerreira solitária em meio à tempestade, continuo minha batalha, uma luz tênue em meio à escuridão. Determinada a não ser apenas uma vítima, mas uma sobrevivente, uma lutadora incansável contra as injustiças que assolam minha vida.